Advogadas que defendem mulheres conquistam espaço e mudanças no Judiciário
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Era antevéspera de Natal, primeiros dias do recesso forense e do aguardado descanso de fim de ano. Enquanto essa entrevista acontecia, a advogada Gabriela Souza avisou que talvez teria que se ausentar para atender uma cliente: um caso de estupro de vulnerável, praticado pelo pai contra a própria filha. A tia da vítima e irmã do acusado tentava invadir a casa para pegar roupas e, sem apoiar a sobrinha, havia chamado a polícia. “É com isso que a gente tem que lidar”, lamentou a advogada.
Gabriela mora em Porto Alegre (RS) e lá fundou o primeiro escritório de advocacia para mulheres da Região Sul. No centro do país, outra advogada, Mariana Tripode, fundou em Brasília (DF) o primeiro escritório de advocacia para mulheres. E nesse contexto de discussão sobre a necessidade de uma atuação profissional da categoria voltada para as mulheres, conheceram Mariana Regis, advogada de Salvador (BA), referência nacional em direito das famílias, com perspectiva de gênero e classe. Juntas, as três criaram o Instituto Brasileiro de Direito e Gênero (IBDG) e, hoje, além de atenderem exclusivamente mulheres, possuem uma rede de contato com advogadas de todo o país e dão cursos de capacitação para aquelas que querem trabalhar na área.
O JOTA conversou com as três advogadas que trabalham com a perspectiva feminista na advocacia e têm atraído muitas seguidoras nas redes sociais em busca de ajuda, apoio jurídico e orientação sobre seus direitos.
Na conversa, elas falaram também sobre os avanços para a construção de novas jurisprudências na área, após o protocolo lançado no final de 2021 pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) — que orienta magistrados e magistradas a utilizarem a perspectiva de gênero em suas decisões.
Feminismo Jurídico e advocacia para mulheres
A compreensão da necessidade de uma advocacia feminista, feita de mulheres e para mulheres, veio aos poucos e com a vivência da profissão na prática. Mariana Regis conta que desde o estágio ficava “intrigada” ao perceber que suas clientes estavam submetidas às mesmas violências:
Eu ficava intrigada, mas não tinha repertório nem bagagem suficiente para entender porque essas mulheres sempre estavam imersas no mesmo cenário: da irresponsabilidade paterna, do que hoje a gente sabe que se chama violência patrimonial, violência psicológica. Na época, eu com 20 anos, não tinha essa bagagem para entender porque todas as mulheres que atendia estavam sendo atravessadas pelas mesmas violências, e nem que se nomeavam violências. Ser uma mulher advogada que atende outras mulheres é algo que a gente aprendeu e vem aprendendo na prática ”.
Mariana Regis, de Salvador, é referência em direito das famílias com recorte de gênero
Gabriela Souza coordenava um escritório especializado em direito trabalhista quando atuou em um caso de assédio sexual de um chefe contra uma funcionária. No curso do processo, ninguém quis depor para a vítima, uma mulher que acabou tendo seu contrato de trabalho rescindido de forma indireta:
“Nós ganhamos esse processo e, quando ganhamos, eu me dei conta de muita coisa que eu achava que estava vendo só na internet, mas que minha advocacia estava ali, para ajudar nisso. A advocacia para mulheres incomodou muito quando ela chegou. Eu tive problemas com o nome, pessoas que viam nas redes sociais e denunciavam na OAB. Logo depois, foi decidido aqui em um processo que a advocacia para mulheres é uma área do direito, assim como tantas outras áreas. A gente criou um pouco desse caminho abrindo um mato fechado à facão”.
Para Mariana Tripode, a área do direito das mulheres, por si só, não garantia efetivamente a construção de jurisprudências e leis necessárias:
“Quando comecei a estudar, percebi que não existia uma lógica de uma advocacia feita de mulheres para mulheres. Muitas pessoas queriam levar vantagem com o direito da mulher, como se fosse um nicho de mercado e atuação, quando, na nossa visão, é um instrumento de luta para a emancipação de mulheres e meninas. Queremos traçar essa advocacia para trazer uma nova jurisprudência e novas leis, poder interagir com quem está criando essas leis e mostrar o que serve ou não, efetivamente, para garantir Justiça à essas mulheres”.
Mariana Tripode fundadora do primeiro escritório de advocacia para mulheres da capital federal
Acesso e informação nas redes sociais
Mariana Regis havia acabado de voltar de uma Especialização na Argentina, em 2016, quando começou a fazer postagens em sua rede social falando sobre direito das mulheres e sobre como os parâmetros tradicionais do direito das famílias silenciava mulheres e legitimava violências. Ela afirma que foi um movimento despretensioso, com o intuito de dar informação, considerando a dificuldade de acesso que as mulheres têm à Justiça.
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“Primeiro era só na minha rede, algo restrito, mas as pessoas começaram a pedir que eu deixasse em público, muitas mulheres começaram a me escrever nas mensagens privadas pedindo ajuda, começaram a perceber que aquilo que elas viviam na relação com os seus ex-maridos ou pais dos filhos delas, por exemplo, não era algo que só elas viviam, eram experiências coletivas”, relata a advogada baiana.
Na pandemia, elas viram essa procura de apoio na internet crescer ainda mais. Com algumas instituições de atendimento e acolhimento fechadas, os perfis nas redes sociais serviram como espaço para pedidos de ajuda:
Gabriela Souza fundadora do primeiro escritório de advocacia para mulheres de Porto Alegre (RS)
“Nas minhas redes sociais eu percebi um aumento muito grande de mulheres pedindo ajuda, ainda que de forma velada algumas vezes. Na pandemia, a violência doméstica cresceu no mundo inteiro. A gente não falava sobre isso, muito embora tivesse algumas advogadas que falavam sobre o direito das mulheres, isso ainda não era visto como uma forma processual”, afirma Gabriela Souza.
Seus perfis, na casa de milhares de seguidores, são administrados por elas mesmas, que também são responsáveis pela criação de seus próprios posts. Mariana Tripode ressalta que a difusão e socialização de conteúdo é o ponto central para a utilização das redes: “Acredito que outras mulheres, que não possuem condições de ter informação dentro de um escritório de advocacia tradicional, porque não vão nem entrar, não conseguem pagar os honorários, vão alcançar por conta das redes”.
“Nas redes sociais a gente fala não só do direito, mas da advocacia que a gente faz, porque a sociedade em geral ainda não conhece essa nova forma de advogar”, complementa Mariana Regis.
Perspectiva de gênero nos tribunais brasileiros
O “Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero” foi apresentado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em outubro de 2021. O documento se propõe a ser um guia para o trabalho de magistradas e magistrados, desde a primeira aproximação com o processo, com os sujeitos processuais, até a interpretação e aplicação do direito.
Fruto de estudos desenvolvidos por um grupo de trabalho instituído pela portaria nº 27 do CNJ, de 2 de fevereiro de 2021, ele tem como objetivo colaborar com a implementação das políticas nacionais relativas, ao Enfrentamento à Violência contra as Mulheres pelo Poder Judiciário e ao Incentivo à Participação Feminina no Poder Judiciário.
O construção do texto contou com a participação de todos os segmentos da Justiça: Estadual, Federal, Trabalhista, Militar e Eleitoral; e, além dos estudos do grupo de trabalho, teve também como referência o “Protocolo para Juzgar con Perspectiva de Género”, concebido pelo Estado do México após determinação da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Em 132 páginas, o protocolo traz a definição de conceitos básicos como sexo, gênero, identidade de gênero e sexualidade; aborda questões centrais sobre desigualdade de gênero, como desigualdades estruturais e relações de poder e divisão sexual do trabalho. O texto explora ainda questões de gênero específicas no âmbito das Justiças Federal, Estadual, do Trabalho, Eleitoral e Militar, em diversos ramos do direito (penal, previdenciário, civil, administrativo, tributário…). O documento foi considerado um marco jurídico também por reconhecer que a alienação parental é usada como uma forma de violência e estratégia, que o não pagamento de pensão configura como uma violência patrimonial, entre outras coisas.
O lançamento do protocolo do CNJ foi considerado uma vitória pelas advogadas:
“A advocacia para mulheres vem com essa lógica de a gente impulsionar e provocar o Judiciário para coisas que até bem pouco tempo não eram vistas. Tenho certeza que a advocacia feminista impulsionou o CNJ”, afirmou Gabriela Souza.
“É muito engrandecedor perceber que a gente pode mudar o padrão de resposta judicial nos casos em que há mulheres envolvidas. Que pode gerar o surgimento de novas interpretações, com lente de gênero, gerar novas jurisprudências, além de debater e acompanhar os projetos de lei e interpretar as leis que estão aí”, concluiu Mariana Regis.
Karla Gamba – Repórter em Brasília. Cobre Saúde no Judiciário, Executivo e Legislativo. Antes, passou pelas redações do Jornal O Globo e Revista Época, cobrindo Palácio do Planalto nos governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro, e pela redação do Correio Braziliense, onde cobriu Cultura. Email: [email protected]