Estatuto da Advocacia: por mais transparência e ética nas carreiras jurídicas?

A recém-sancionada Lei 14.365/22 altera a Lei 8.906/94 (Estatuto da Advocacia) e outras leis, inclusive do Código de Processo Civil e de Processo Penal, e traz à tona certa complexidade no controle legal já estabelecido e nas práticas de autorregulação da profissão, apesar de alguns importantes avanços[1].

A Constituição Federal de 1988 explicita e dignifica o papel do advogado em seu artigo 133, como indispensável à administração da Justiça, essencial para a pacificação de relações sociais, hoje tão conturbadas.

O exercício da advocacia como função essencial foi expressamente regulamentado pelo Estatuto da Advocacia, determinando, em diversos dispositivos, que a advocacia deve ser exercida com ética, cuja falta gerará a aplicação de inúmeras sanções na esfera administrativa via tribunais de ética.

Já no contexto anterior, muitos advogados e escritórios de advocacia vinham adotando códigos de conduta e robustos programas de integridade e compliance para regular práticas internas e externas, alinhadas ao que se esperava de comportamentos éticos e íntegros na atividade da advocacia.

Esses esforços devem precisar de ajustes diante das recentes alterações legislativas e de um novo risco, o de fomento de um ambiente de concorrência desleal entre os escritórios e advogados que têm standards mais altos de conduta ética e os que buscam acomodar suas práticas nas brechas legais.

Como pontuado pela Transparência Internacional (2022), a flexibilização das formalidades contratuais entre advogados e clientes, o afastamento do controle do Judiciário e de órgãos de fiscalização sobre a prestação de serviços e a cobrança de honorários, podem ser brechas para práticas de corrupção.

Princípios como moralidade, ética, integridade, governança e transparência são pilares essenciais à legitimidade da função da advocacia e não podem se transformar em meras palavras desprovidas de significado e substância, disponíveis numa prateleira para uso dos menos escrupulosos. Eles são componentes cruciais de sustentação da integridade do profissional da advocacia e o nível de integridade dos profissionais do direito é o que lhes permite tomar decisões baseadas em fatos e orientadas pela lei, independentemente de preconceitos ou interesses pessoais ou de influências externas.

A integridade, aqui tratada, deve permear desde o processo de ingresso do futuro profissional do direito nas faculdades, passando por disciplinas que tragam conteúdos de ética, integridade, compliance, transparência e combate à corrupção; prosseguindo nas regras de ingresso em cargos públicos; na avaliação e monitoramento de performance na execução das suas atividades até o fim da carreira, dignificando e honrando assim a profissão jurídica.

Semelhante cuidado é necessário nos concursos públicos para ingresso de professores, inclusive catedráticos, em faculdades de direito.

O que se pode ver, na prática, é que nem mesmo os concursos públicos de ingresso de professores, inclusive em renomadas instituições de ensino jurídico no país, estão suficientemente protegidos de interesses mesquinhos, personalíssimos, opacidade e pelos negócios de poucos. O que se pode esperar dos alunos egressos de instituições de ensino do direito quando não se aplica, em casa, princípios basilares, como aqueles mencionados há pouco?

Não podem esses concursos estar maculados, total ou parcialmente, pela falta de transparência em qualquer etapa do processo, tornando necessária a intervenção do judiciário para suspensão de práticas inaceitáveis.

Professores de instituições de ensino jurídico no país devem reconhecer sua responsabilidade de servir à sociedade e não se limitar à busca do seu próprio interesse, o que não poderá ser alcançado por decreto: a integridade, a moral, a ética, a transparência, a boa governança e a dedicação ao bem-estar da sociedade não podem, nem devem ser legisladas por decreto. E as boas práticas de responsabilidade social, ética e profissional na academia devem existir para esclarecer aos professores recém-chegados, mas, também, para relembrar aos professores que já lá estão há algum tempo, que os princípios éticos são a base, o ethos da profissão jurídica.

Muito mais do que o cumprimento de uma questão legal, os jovens estudantes e recém-formados parecem estar cada vez mais interessados em proteção de reputação e de identificação com propósito. Estímulos, exemplos e lições contrários, ainda na faculdade, criam um descompasso e confusão indesejáveis, senão um desestímulo para o ingresso e permanência na carreira.

Ademais, as novas tecnologias aplicadas ao direito e as complexidades a elas vinculadas, demandam uma verdadeira transformação da prática jurídica, em caráter contínuo.

Atentas à nova realidade, algumas seções estaduais da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) adotaram medidas positivas e que parecem irreversíveis. A OAB-PR, por exemplo, inovou com a adoção de um “Programa de Integridade” em 2021 que permite, inclusive, denúncias por canal independente. A OAB-SP, com quatro centenas de milhar de inscritos, em breve deve seguir o mesmo caminho. Na mesma linha, a OAB-MT lançou, recentemente, “Canal de Defesa da Diversidade”, para receber denúncias sobre qualquer ato de discriminação, preconceito ou constrangimento em relação à sexualidade. E a OAB Nacional difundiu, no início deste ano, o novo canal de denúncias contra “Assédio Moral e Sexual para Advogadas”.

A tendência atual é que se vá, com essas medidas, muito além do que já fazem os Tribunais de Ética e Disciplina da OAB, mesmo porque a pauta de integridade e compliance permite elasticidade. Será com essa elasticidade que se poderá dar um salto no processo de melhoria contínua na pauta contra a discriminação de gênero e de raça que a nova gestão da OAB-SP adotou, por exemplo.

Admitir erros passados e corrigi-los logo é uma necessidade, assim como também é vital oxigenar processos, promovendo uma verdadeira diversidade para que decisões possam ser tomadas de forma plural, com oitiva de perspectivas relevantes e, obviamente, diversas. E, a academia precisa dar o exemplo!

E, nem o Brasil, nem a advocacia, nem as faculdades de direito podem continuar a se isolar do mundo nessa ampla e importantíssima pauta. Exemplos internacionais de melhor governança e transparência, em questões de interesse da advocacia, não faltam.

A Itália, por exemplo, votará neste domingo (12/6), um referendo para que, entre outros temas, reconsidere-se como devem ser avaliados integrantes dos “consigli giudiziari” (ou conselhos judiciários), órgãos compostos por magistrados, advogados, professores etc., mas onde hoje somente magistrados votam nas avaliações. Como notoriamente é um sistema jurídico com profunda semelhança e que inspirou e inspira o brasileiro, quem sabe a mera discussão na Itália possa ajudar numa reflexão do que se faz e se deve fazer aqui, ainda que a lei italiana não mude em razão do resultado do referendo?


[1] Lei 14.365, de 2 de junho de 2022. Altera as Leis 8.906, de 4 de julho de 1994 (Estatuto da Advocacia), e 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), e o Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), para incluir disposições sobre a atividade privativa de advogado, a fiscalização, a competência, as prerrogativas, as sociedades de advogados, o advogado associado, os honorários advocatícios, os limites de impedimentos ao exercício da advocacia e a suspensão de prazo no processo penal. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2022/Lei/L14365.htm.

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