Natureza jurídica dos contratos de associação de advogados?
Nos termos do art. 15 da Lei nº 8.906/94 (EOAB), qualquer advogado pode exercer a advocacia sob três formas jurídicas distintas: (i) individualmente; (ii) constituir sociedade unipessoal de advocacia (tipo societário sui generis e específico para os advogados); e (iii) constituir sociedade de advogados, desde que possua ao menos outro advogado para ser seu sócio. Desse modo, e como já tivemos a oportunidade de discutir em artigos anteriores[1], os advogados não podem se associar sob nenhuma outra forma societária, nem mesmo formar uma sociedade de advogados que tenha sequer a forma de um dos tipos societários empresariais (art. 16 do EOAB).
Assim, é forçoso se concluir que os advogados, se quiserem unir esforços em prol de um objetivo social em comum, eles devem fazê-lo sob a forma de sociedade simples pura.
Ocorre, contudo, que existe uma outra instituição jurídica bastante utilizada pelos advogados que desejam trabalhar em conjunto, mas que (por qualquer razão) não desejam constituir uma sociedade de advogados entre si: o contrato de associação previsto no art. 39 do Regulamento Geral do Estatuto da OAB (“Regulamento da OAB”), que tem a seguinte redação:
Art. 39. A sociedade de advogados pode associar-se com advogados, sem vínculo de emprego, para participação nos resultados.
Parágrafo único. Os contratos referidos neste artigo são averbados no registro da sociedade de advogados.
Observe-se que o contrato de associação não está previsto no EOAB, nem no Código Civil (“CC”), mas apenas no Regulamento da OAB, o que poderia levantar dúvidas acerca da legalidade de sua existência. Vale dizer, o Conselho Federal da OAB (“CFOAB”), ao editar o Regulamento da OAB, poderia criar uma forma de associação entre os advogados à revelia do art. 15 do EOAB?
Como bem se sabe, temos apenas dois grandes princípios constitucionais a serem considerados quando tratamos da regulação estatal sobre as atividades econômicas privadas, o primeiro deles é o Princípio da Legalidade previsto no art. 5º, II, da Constituição Federal (“CF/88”), que prescreve que ninguém será obrigado a deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. E o segundo deles é a valorização da Livre Iniciativa, estando previsto no art. 170, p.u., da CF/88 que, salvo nos casos previstos em lei, é assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica.
Especificamente para o caso ora em comento, é imprescindível relembrar que a liberdade associativa (em sentido lato) é também uma das garantias constitucionais previstas no art. 5º, XVII e XVIII, da CF/88. Esse contexto normativo nos assegura concluir que o legislador constitucional quis assegurar às pessoas a liberdade para se associarem para qualquer fim lícito, inclusive, é claro, a exploração de atividades econômicas como, por exemplo, a advocacia.
Em auxílio a esses princípios, e para lhes dar maior densidade normativa (ou “força normativa” como diria Hesse[2]), o legislador ordinário editou a Lei nº 13.784/19 (“LLE”) que trouxe a “Declaração de Direitos de Liberdade Econômica” para o nosso ordenamento jurídico. E, no art. 2º, I e III, da LLE, o legislador também deixou claro que a liberdade é uma garantia ao exercício das atividades econômicas e que a intervenção estatal sobre o exercício de atividades econômicas deve ser subsidiária e excepcional. Dentre as diversas garantias explicitadas pela LLE, o art. 4º, VII foi claro em afirmar que as entidades públicas ou equiparadas devem se abster a, indevidamente, limitar a livre formação de sociedades empresariais ou atividades econômicas:
Art. 4º É dever da administração pública e das demais entidades que se vinculam a esta Lei, no exercício de regulamentação de norma pública pertencente à legislação sobre a qual esta Lei versa, exceto se em estrito cumprimento a previsão explícita em lei, evitar o abuso do poder regulatório de maneira a, indevidamente:
[…]
VII – introduzir limites à livre formação de sociedades empresariais ou de atividades econômicas […].
A liberdade de associação abrange o direito de constituir associações ou sociedades, de ingressar e participar nas associações já constituídas, o direito de não se associar e sair da associação e o direito de auto-organizar-se e desenvolver a atividade associativa[3].
Para Jorge Miranda[4] (1998, p. 419-420), a liberdade de associação seria um direito complexo, abrangendo o direito de constituir associações, o direito de não ser coagido a ingressar em uma associação, a pagar contribuições ou de permanecer vinculado à associação. O mesmo autor afirma que ela representa também o direito de deliberar a dissolução da associação, o direito de auto-organização, de livre formação dos seus órgãos, o direito de livre prossecução dos seus fins, o direito de submeter-se a personificação e ainda a proteção contra intervenções arbitrárias do poder político.
À luz do conteúdo da liberdade de associação, vê-se que essa liberdade se revela como um limite a atuação estatal, isto é, revela-se como um direito de defesa que visa a impedir interferências ilegítimas do Poder Público, seja por meio do Executivo, do Legislativo e do Judiciário. Os direitos fundamentais, como a liberdade de associação, são cânones da legislação[5], vale dizer, representam limites para a formulação de regras.
Desse modo, a introdução de limites à associação entre particulares para o desenvolvimento de atividades econômicas será vista como violação à liberdade econômica, caso seja feita de forma impensada e desarrazoada. Pode-se dizer ainda que esse tipo de intervenção do Estado ou de agentes equiparados somente deve ser admissível quando houver alguma justificativa plausível e razoável, sob pena de ser caracterizada como ilegal.
É inegável que a Ordem dos Advogados do Brasil (“OAB”) se enquadra no conceito de “demais entidades”, nos termos dos arts. 1º, §6º, e 4º, caput, da LLE, pois é o próprio art. 15 do EOAB quem delega ao Regulamento da OAB a competência para disciplinar as formas societárias sob as quais os advogados podem se organizar. E, nesse passo, a autorização para que os advogados se constituam sob a forma de um ou outro tipo societário é um ato público de liberação que condiciona o exercício de uma atividade econômica (art. 1º, §6º, da LLE), a saber, a advocacia. E, nesse passo, essa autorização também está sujeita aos limites impostos pela LLE.
De fato, a LLE é norma posterior e genérica e, portanto, não tem o condão de revogar os preceitos do EOAB, por outro lado, os seus princípios impedem que se restrinja a autorização de formas de exercício de atividade econômica e associativa além daquilo que expressamente disse o legislador ordinário. E o que o legislador, expressamente, vedou foi a constituição de sociedades de advogados que não sejam feitas sob a forma de sociedade unipessoal de advocacia ou sob a forma de sociedade simples pura.
Feitas essas considerações, observa-se que o art. 39 do Regulamento da OAB é genérico e inespecífico, sem deixar clara a natureza jurídica do chamado contrato de associação de advogados. Entretanto, esse dispositivo normativo foi regulamentado por meio do Provimento nº 187/2018 do CFOAB que alterou o Provimento nº 112/2006 do CFOAB para que passasse a tratar tanto das sociedades de advogados como dos contratos de associação. Importante observar que o art. 8º, III e IV, do Provimento 112/2006 prevê que serão averbados os “ajustes” de associação da sociedade de advogados com advogados individuais e com outras sociedades de advogado:
Art. 8º Serão averbados à margem do registro da sociedade e, a juízo de cada Conselho Seccional, em livro próprio ou ficha de controle mantidos para tal fim:
[…]
III – os ajustes e distratos de sua associação com advogados, sem vínculo de emprego, para atuação profissional e participação nos resultados; (NR. Ver Provimento 187/2018).
IV – os ajustes e distratos de associação ou de colaboração com outras Sociedades de Advogados; (NR. Ver Provimento 187/2018).
E o §3º desse mesmo dispositivo regulamentar deixa muito claro que não se pode extrair do contrato de associação a existência de uma relação societária entre os associados:
Art. 8º […].
3º As associações entre Sociedades de Advogados não podem conduzir a que uma passe a ser sócia de outra, cumprindo-lhes respeitar a regra de que somente advogados, pessoas naturais, podem constituir Sociedade de Advogados.
Observa-se que, a despeito de os Provimentos 187/2018 e 112/2006 do CFOAB não afirmarem qual seria a natureza jurídica do contrato de associação de advogados, eles expressamente afirmaram o que ele não seria, a saber, o contrato de associação não é um arranjo societário. Conclui-se, portanto, que o CFOAB não teve a intenção de criar novo tipo societário fora dos parâmetros do art. 15 do EOAB ao autorizar o contrato de associação entre advogados ou entre sociedades de advogados.
Com efeito, não importa o nome dado aos ajustes entabulados entre as partes, eles devem ser analisados à luz da real intenção das partes, a qual se estabelece no sentido da regulação de uma estrutura para a prestação de serviços advocatícios pelo advogado associado. Veja-se, por sua vez, o que diz o art. 981 do CC:
Art. 981. Celebram contrato de sociedade as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de atividade econômica e a partilha, entre si, dos resultados.
Nos termos do art. 981 do CC, pode-se destacar na formulação de qualquer conceito de sociedade alguns elementos, quais sejam: a) a existência de uma ou mais pessoas; b) reunião de capital e trabalho (fatores da produção); c) atividade econômica (em oposição a atividades de mero gozo, ou filantrópicas); d) fins comuns (inerentes ao exercício da atividade por várias pessoas em conjunto); e) partilha dos resultados (decorrência do exercício em comum).
De fato, nos contratos de associação, existem pessoas, contribuição, na busca de uma atividade econômica e, eventualmente, pode-se visualizar até a existência de fins comuns. Contudo, não se vislumbra nesse tipo de contratação, a existência da necessária partilha dos resultados, conforme se verá.
Destinando-se, em regra, a produção do lucro, nada mais lógico que a divisão desse lucro entre todos os membros. “Pôr como requisito essencial a divisão dos lucros, significa afirmar que o resultado da atividade social deve ser em benefício de todos os sócios e não de alguns somente. À comunhão de meio e da atividade deve corresponder a comunhão dos resultados: não é permitida a exclusão de um sócio dos lucros”[6].
O problema está na participação nas perdas. Em contrapartida à participação nos lucros, todos os sócios devem participar também nas perdas, expressão essa a ser entendida com atenção. A participação nas perdas não significa que o sócio seja obrigado diante de um prejuízo a desembolsar novas quantias, mas significa tão somente que pelo menos a sua contribuição para o fundo social deve entrar para cobrir as perdas, vale dizer, todos os sócios devem assumir os riscos inerentes à atividade comercial, podendo perder ao menos sua contribuição.
Não se trata de uma não limitação da responsabilidade, mas apenas da possibilidade de perda da sua contribuição, presente inclusive quando a contribuição for em indústria. Neste caso, o risco assumido é a perda da remuneração do trabalho prestado em benefício da sociedade[7].“É contraditório que um sócio seja excluído da participação nos ganhos, e corra o risco de perder sua contribuição sem uma utilidade correspondente, ou que seja completamente excluído das perdas, de modo que possa conseguir lucros sem arriscar nada.”[8]Corrobora esse entendimento, o disposto no artigo 1.008 do CC que diz que “É nula a estipulação contratual que exclua qualquer sócio de participar dos lucros e das perdas”.
A própria Resolução 169 do Conselho Federal da OAB tenta deixar claro, em seu artigo 7º, que “O advogado associado não integrará como sócio a sociedade de advogados, não participará dos lucros nem dos prejuízos da sociedade, mas participará dos honorários contratados por esta corri os clientes, e/ou resultantes de sucumbência, referentes às causas e interesses que lhe forem confiados, conjunta ou isoladamente, na forma prevista no contrato de associação”.
Em relação aos lucros, é possível entender que o associado até recebe uma parte dos lucros, ainda que em valor fixo. Contudo, o associado não participa das perdas, na medida em que nem parcialmente assume o risco do negócio. Ainda que não se exija que o sócio seja ilimitadamente responsável, é certo que é da essência da sociedade, que haja ao menos o risco de perder o investimento realizado naquela atividade, ainda que em trabalho. As previsões de responsabilidade profissional do associado (art. 40 do Regulamento Geral da OAB) e responsabilidade por danos causados à sociedade e aos seus sócios (art. 10 da Res. 169/CFOAB) não mudam essa conclusão, pois, representam uma responsabilidade por ato próprio, que independeria da condição de sócio ou associado.
Diante da falta de participação nas perdas, não é possível incluir o associado como integrante de uma sociedade, ainda quem em comum. Acreditamos que o contrato de associação é um contrato comum de prestação de serviços, realizado dentro da autonomia das partes.
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[1] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/analise-oab-codigo-civil-25032021 e https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/analise-do-art-4o-do-provimento-no-112-06-do-conselho-federal-da-oab-01042021
[2] HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991.
[3] SALVADOR CORDECH, Pablo (coordinador). Asociaciones, derechos fundamentales y autonomia privada. Madri: Civitas, 1997, p. 100-101.
[4] MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. 2. ed. Coimbra: Coimbra, 1998, Vol. IV, p. 419/420.
[5] JIMENEZ CAMPO, Javier. Derechos fundamentales: concepto y garantías. Madri: Trotta, 1999, p. 66.
[6] FERRI, Giuseppe. Manuale di diritto commerciale. 4. ed. Torino: UTET, 1976, p. 221, tradução livre de “porre come requisito essenziale la divisione degli utili, significa affermare che il risultato della attivitá sociale deve andare a beneficio di tutti i soci e non di alcuni soltanto. Allá comunanza dei mezzi e dell’attivitá deve corrispondere la comunanza dei risultati: non é consentita pertanto la esclusione di um socio dagli utili”.
[7] CARVALHO DE MENDONÇA, J. X. Tratado de direito comercial brasileiro. Atualizado por Ruymar de Lima Nucci. Campinas: Bookseller, 2001, v. 2, tomo 2, p. 54; ESCARRA, Jean; ESCARRA, Edouard; RAULT, Jean. Traité théorique et pratique de droit commercial. Paris: Librairie du Recueil Sirey, 1950, p. 153.
[8] FERRARA JUNIOR, Francesco; CORSI, Francesco. Gli imprenditori e le società. 11. ed. Milano: Giuffrè, 1999, p. 287, tradução livre de “è contraddittorio che un socio sia escluso dal partecipare ai guadagni, che corra il rischio di perdere il conferimento senza una utilità corrispondente, o che sia completamente escluso dalle perdite, per modo che possa conseguire un utile senza rischiar nulla”.